Group show at Luisa Strina gallery - São Paulo, Brazil / 2021
curated by Pollyana Quintella




Não é raro, em 2021, constatarmos nossa incapacidade frequente de distinguir realidade e ficção. Fato é que o presente soa delirante: não sobrou acordo algum a respeito de fatos sociais básicos, os parâmetros de leitura do real caducaram ou tornaram-se descontínuos e episódicos, e o pacto democrático parece cada vez mais longínquo. Há gente adoecida por toda parte. Dormência, enjoo e vertigem. Multiplicam-se as abstrações e subtraem-se os estados de direito. O que resta?
No entanto, se o projeto de poder em curso é delirante ao seu modo, a fabulação também existe enquanto força propositiva — estratégia de reinvenção do mundo e produção de sentidos desviantes aos modelos vigentes. É a imaginação, afinal, que expande os horizontes negociáveis do possível e se afirma enquanto prática social essencial para a construção de identidades coletivas, afirmando-se enquanto operação fundamentalmente política. Mesmo por isso, os artistas aqui reunidos buscam ter na fabulação um empreendimento de saúde: possibilidade de vida.
É nessa direção que A MÁQUINA LÍRICA se produz. Uma exposição em torno do delírio e do sonho, que aproxima ecos do passado e sussurros do presente, fazendo lembrar que memória e imaginação são instâncias indissociáveis. Sabe-se que é difícil imaginar sem mergulhar, com mais ou menos intenção, nas gavetas do passado. E não é possível lembrar sem uma dose de criação. Mesmo por isso, passado e futuro são vetores que se entrecruzam e se transformam continuamente (como diz o ditado iorubá, “Exu matou um pássaro ontem, com uma pedra que só jogou hoje”). Quem não lembra, e tampouco imagina, está fadado à visão curta e nublada do presente. Além disso, traçamos diálogos entre artistas “populares”, “emergentes” e “consagrados”, pondo em crise certas categorias normativas que enquadram a prática artística. Nesse ponto de convergência, a exposição se anuncia como espaço de suspensão: embaralha os pontos cardeais, interrompe os fluxos do relógio e convida o público a devanear junto a obras que questionam os regimes de visibilidade e produção de sentido.
Aqui, os enunciados são imagens fantasiosas, endereçamentos oblíquos, alucinações, profecias, sussurros e segredos que buscam torcer e friccionar a sintaxe de suas línguas, no anseio de vislumbrar outros horizontes e rearranjar relações entre viventes, extra-viventes, não-viventes, pós-humanos, ciborgues e outros gêneros. Não será possível optar pela realidade ou pela ficção, mas somente produzir outras negociações entre esses elementos antes de tudo indissociáveis. Ante ao sonho da razão, reivindicamos o riso, o assombro e o desvario como ferramentas de sobrevivência. É preciso delirar o país.
Pollyana Quintella